Em 2014, Felipão propôs uma reflexão pertinente antes do fracasso contra a Alemanha: “No Brasil, temos mania de achar que os outros times não jogam nada”. Porém, sem dar conta, o técnico se incluía no grupo dos soberbos, já que cantou favoritismo e admitiu que a seleção tinha obrigação de ganhar a Copa do Mundo quando o torneio nem sequer havia começado. Tal qual a crença de eterno favorito, o Brasil também sofre da ânsia por culpados instantaneamente à derrota. Foi assim depois do 7 a 1, com a crucificação sumária de David Luiz, Bernard, Thiago Silva e companhia. E se repete agora, após a eliminação para a Bélgica nas quartas de final, como se a cultura do bode expiatório que começou com Barbosa no Maracanazo fosse o princípio da solução de todos os problemas.
Fernandinho, que já havia sido escorraçado na última Copa e conseguiu dar a volta por cima, marcou contra em um lance infeliz dentro da área. Falhou na missão de substituir Casemiro, que, até então, era uma das referências do Brasil no Mundial. Diferentemente do jogador do Real Madrid, Fernandinho não é um primeiro volante típico. Sai mais para o jogo e suscita contra-ataques, suficientes para desestabilizar o sistema defensivo brasileiro diante da velocidade de Lukaku, Hazard e De Bruyne. Atribuir a culpa a um só jogador, entretanto, é ignorar o peso das decisões técnicas. Foi uma decisão de Tite e sua comissão privilegiar atletas versáteis e de mais mobilidade a buscar um jogador com características mais próximas de Casemiro para o grupo de convocados.
Também foi uma decisão alheia ao campo manter até o fim um jogador lesionado como Fred e insistir em Gabriel Jesus de titular mesmo sem marcar nenhum gol. Da mesma forma, a opção por treinos de alta intensidade, que podem ter contribuído para lesões de cinco jogadores por desgaste físico, e pela volta de Marcelo, menos marcador que Filipe Luís, em jogo contra um time leve e rápido. Ou ainda a gestão leniente dos arroubos exibicionistas de Neymar. Enquanto Tite pregava uma coisa no discurso sobre postura e boa conduta, o craque do time fazia outra no gramado. O camisa 10, que ficou três meses parado em recuperação de uma fratura no pé, não fez uma Copa ruim, mas, ainda assim, esteve distante do melhor desempenho que já ofereceu à seleção. Ausente no 7 a 1, a derrota deve lhe servir de aprendizado e um convite à autocrítica, embora não diminua, a exemplo de Messi e Cristiano Ronaldo, seu status como grande jogador. Mostrou que pode ser mais eficiente se escolher melhor os momentos para recorrer à capacidade individual.
Porém, em que pese equívocos e escolhas, a mesma comissão técnica foi a responsável por resgatar o Brasil de um atoleiro sem precedentes. Um time completamente desacreditado pelo maior vexame da história, ameaçado de ficar fora da Copa em meio ao conflituoso retorno de Dunga ao comando, se transformou em questão de poucos jogos na equipe a ser batida. Não era fácil recuperar a autoestima do futebol brasileiro, mas com competência e serenidade, Tite logo fez muita gente esquecer que a camisa amarela havia sido tão desmoralizada. Jogadores renegados como Paulinho, Willian e Thiago Silva viraram a chave e se mostraram tão importantes quanto o achado Gabriel Jesus, hoje criticado, na referência de ataque.
A roda do futebol gira rápido. Poucas coisas permitem reviravoltas tão surpreendentes. Por seu caráter passional, busca-se atacar as feridas perante o resultado adverso, como se o fato de ganharem bons salários, por exemplo, tirasse a vontade de vencer dos jogadores ou justificasse todo tipo de impropérios que fogem à análise do desempenho em campo e deflagram ondas de linchamento moral. Não há dúvida de que a maioria dos craques da seleção, sobretudo os que jogam na Europa, se distanciou do torcedor brasileiro por pura insensibilidade dos cartolas da CBF, que, nem mesmo depois da devassa que sofreu por denúncias de corrupção, teve a lucidez de reaproximar o time de seu povo. Nesse caso, a culpa não é das estrelas, mas dos oligarcas e coronéis que ofuscam seu brilho.
Este não é o momento de defenestrar Fernandinho, apontar o dedo para Neymar, pedir a cabeça de Tite, desacreditar o talento de Gabriel Jesus e Marcelo, muito menos de eleger qualquer culpado que tenha dado a cara no campo por dirigentes mais preocupados em se livrar de suspeitas e investigações. Como bem observou Tite no fim da partida, “o Brasil tem uma ideia de futebol”. Provou isso na Rússia exibindo repertório tático, segurança na defesa, volume de jogo e força coletiva. Pela primeira vez sob o comando do técnico, que merece seguir no cargo para o próximo ciclo até a Copa do Catar, em 2022, a seleção perdeu um jogo de três pontos e sofreu dois gols. Se desestabilizou depois do primeiro e pagou caro pelas falhas contra um adversário tão impetuoso. A caça às bruxas sugere que os outros times não jogam nada. A Bélgica deu a prova definitiva de que a geração de ouro, trabalhada com esmero há alguns anos, está pronta para uma grande conquista. Reconhecer seus méritos – e, por que não, utilizá-los como espelho – é mais edificante que a busca obsessiva por vilões.
*EL PAÍS Brasil