Tonho, sem o “Picolé”,
seria um Tonho qualquer,
quase como se diz de um Zé Ninguém.
Ao ganhar o “sobrenome” “Picolé”
o Tonho, como qualquer Zé,
foi se sabendo um Tonho alguém,
ou melhor, deu-se a saber assim a quem lhe quer:
chamar um Tonho que vende picolés
e não apenas chamar o Tonho
por outro motivo qualquer.

Mas o “Picolé” grudou em Tonho,
que é impossível apartar um do outro
sem haver perdas e não ganhos;
mais perdas à imagem do Tonho
do que à venda baixa dos picolés de outros anos;
perdas à imagem como esse personagem
estando fora da margem do rio Grande.

O Tonho sem o nome “Picolé”
é como uma cidade ribeirinha sem cais;
como um cais sem porto;
como um porto sem barca;
como uma barca sem levantar âncoras
porque o rio não arca
com o volume d’água
que se esvazia às escâncaras.

Lembrar dos Tonhos sem o seu “sobrenome”
é como vê-los passar e perdê-los de vista,
sem poder gritá-los sem um apelido,
como esse que passa agora
na calçada do cais,
próximo à rampa que fede urina;
vindo da outra margem da cidade,
para sustentar sua vida.

Ele que passa agora
próximo à rampa que fede urina,
a mesma rampa que numa tarde,
em plena luz do dia,
fizeram amor Tonha e Gasolina,
esse homem que o identificam como Tonho do Picolé,
e que sem esse outro nome não seria a pessoa que é.

Esse homem que, entra ano e sai ano,
vem ensaiando seu passo,
não pra pular atrás do trio elétrico
nem pra completar a métrica de uma rima,
esse homem que deixa seu rastro de sandálias havaianas,
quase sempre de barba,
com camisa do Flamengo,
sem lágrimas, lamentos ou dengo,
(mesmo que seu time não vença).

Vem ele rompendo as amarras da dureza da vida,
atravessa a praça com a caixa no ombro,
e, mesmo sem ter mais os picolés à venda,
guarda em sua arquitetura morena,
guarda em sua coluna vertebral
(sem bico de papagaio),
um invisível palito de picolé ou aparência;
mesmo que ele tire a camisa do time,
não deixará de vestir a camisa da resistência
e correr pra abraçar sua justa causa,
na diária luta da sobrevivência.

Ainda preserva esse Tonho
algo de picolé ou de sua aparência:
o porte de um palito ereto
recoberto pelos cachos grisalhos
que lembram um picolé derretendo,
de nata de leite ou de groselha,
ou de buriti, que é mais grudento;
lembram, seus cabelos, os cachos de buriti,
antes de estar no tacho fervendo.

Tonho sem o nome “Picolé”
tem mais perdas do que ganhos,
mais perdas até que a caixa vazia de picolé,
mesmo que ela esteja agora cheia de cerveja.

Diante da lata, reciclável, de alumínio
pensou Tonho, no mínimo,
reciclar o círculo de amigos,
que ele tinha quando menino;
reciclando a freguesia antiga
dos picolés e laranjinhas,
feita de meninos de outrora,
para os, agora, homens feitos
para a cerveja em lata;
pensou Tonho, do fundo
de sua arquitetura mulata,
por em prática, reciclando seu ofício,
mudando a oferta de picolés,
para a cerveja em lata,
que, também como picolés, causa vício.

Segue Tonho como suporte de um picolé,
alto, magro, que não é garoto-propaganda
da Kibon ou da Zorzo,
segue ele sereno ao sol ardendo
sem lhe deixar zonzo os miolos,
sem derreter-lhe a aparência antiga
de um menino que vendeu picolé no solo
de uma Barreiras de velhas esquinas.

Segue Tonho, de sol a sol,
expondo-se à luz do dia como vitrine,
e com o labor ambulante de um nordestino.

Clerbet Luiz

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